Entrevista com Wagner Morales.

Le Silo: Os filmes que você escolheu apresentar à ENSBA tratam, de uma forma ou de outra, da noção de “évènement”. Porquê essa escolha? Como você elaborou a seleção de filmes em questão?

Wagner Morales: O engraçado é que em francês a palavra « événement » aglutina~ dois sentidos que para nós brasileiros se concretizam em dois substantivos diferentes : « evento » e « acontecimento », duas palavras próximas, mas que carregam sentidos diferentes. Para nós, « evento » é algo que assume os ares de uma ação planejada, uma ação de alguma maneira esperada e marcada : uma festa, uma comemoração, a apresentação de um ato ensaiado. Já quando dizemos « acontecimento », geralmente estamos nos referindo às ações frutos do acaso, uma ocorrência não planejada, geralmente testemunhada por quem estava ali na hora em que ela ocorre. Quem viu, viu, não irá se repetir nunca mais : uma estrela cadente, um acidente de carro, um cantor que desafina.

Nos trabalhos presentes nessa seleção intitulada « Brazilian news : evento e acontecimento », tentei dar conta da maneira pela qual esses dois significados do termo « événement » se mostra para a lente de uma câmera. Nos trabalho aqui mostrados, sente-se uma forte influência de um vídeo primordial, que vem lá dos anos 60, época em que os artistas começavam a utilizar este suporte em seus trabalhos devido à sua potência de registro. São trabalhos que se valiam do vídeo pra mostrar alguma coisa que não poderia ser mostrada em outro tipo de recurso narrativo e se valem do vídeo como a simples e melhor forma de registrar acontecimentos, sejam eles espontâneos ou planejados.

Um outro laço que une esses vídeos é o fato deles serem realizados por artistas plásticos e não por cineastas ou videomakers. São artistas que fazem vídeo. E isso é um traço importante quando percebemos nos trabalhos um certo olhar que não busca nada além do registro de uma situação, um olhar que se contenta em ser um testemunho de uma ação e não se preocupa com uma construção narrativa ficcional ou o efeito de realidade de uma história encenada.

S: O campo da arte contemporânea acolhe cada vez mais jovens cineastas. No que diz respeito às imagens em movimento, como se apresenta hoje a cena artística brasileira, em particular em São Paulo?

W.M.: No Brasil não há cinema experimental. Isso acabou quando o super-8 deixou de existir. Nosso cinema hoje é essencialmente comercial e leviano. O que há, desde os anos 80, são muitos artistas que trabalham com o vídeo de modo experimental e, nesse caso, tanto na área do documentário, do ficcional e nas artes plásticas. Por aqui temos 4 grandes pólos produtores de vídeo que se articulam ao redor das grandes cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Cada uma dessa região produziu uma safra de artistas que, de alguma forma, dialogam entre si. É possível até dizer que existe um gênero do vídeo experimental e documental de São Paulo, outro de Minas Gerais e assim por diante. Uma coisa nova que acontece, principalmente na cena paulistana, é o surgimento de uma produção de imagens em movimento realizadas por artistas plásticos, pessoas que antes realizavam pintura, escultura, fotografia e instalações e que começam a se valer do vídeo. Esse tipo de produção, na qual eu me insiro, passou a ganhar corpo e, como será possível perceber nessa seleção apresentada nessa mostra, constitui o que de mais interessante se faz hoje em dia.

S: O ano passado você foi comissário da mostra de vídeo da Bienal de São Paulo. Como foi essa experiência? Que trabalhos – e porquê – você escolheu mostrar?

W. M.: Na 28ª Bienal de São Paulo, realizada no ano passado, fui convidado para fazer a curadoria do espaço chamado « Video Lounge », que era uma programação de filmes e vídeos que acontecia dentro e durante a bienal.

O termo lounge nos remete a espaços de conforto, descontração e, até, a um certo estilo musical, no entanto, existem outras relações possíveis pra serem consideradas no nosso caso: encontro, pausa, reflexão, flerte. E era nesse universo que a minha proposta do « Vídeo Lounge» se inseria. A idéia era, através de uma extensa programação de vídeos e filmes, estimular e possibilitar a construção de um pensamento sobre o que se vê ali, nos trabalhos mostrados nos monitores de plasma e na bienal como um todo.

Dessa forma, os recortes, os quais chamei de “linhas temáticas”, eram uma espécie de caixa de ressonância daquilo que estava presente nas obras e nas propostas dos artistas participantes daquela bienal. Explico melhor: o meu ponto de partida para a construção destas linhas temáticas foi um estudo das propostas e obras apresentadas pelos 40 e poucos artistas que participam da bienal este ano. O próprio conceito chave da curadoria principal, o termo “em vivo contato”, foi muito determinante. Acreditei que estabelecer um contato com os artistas que estariam presentes durante a bienal seria determinante para a escolha do que mostrar no « Video Lounge ». Digo contato no sentido intelectual, pois não procurei nenhum artista pessoalmente, mas sim, analisei um a um os projetos por eles apresentados, além dos trabalhos anteriores, textos e algumas referências de cada um. Foi desse caldo que saíram as 4 linhas temáticas (Telepresença, Ação da música, Diariamente (vida real): pessoas e lugares e Performance), além das sessões de filmes e vídeos presentes no Auditório do terceiro andar.
Mais do que separações e fronteiras bem definidas, essas linhas temáticas apontavam para uma confluência de questões em comum, um panorama geral onde existia um horizonte compartilhado.

Todas as quatro linhas temáticas tentavam trazer ao público panoramas possíveis onde, evitando o didatismo fácil, podíamos perceber como os trabalhos escapam a classificações rígidas, uma característica que é própria das artes visuais: um documentário que também é o registro de uma performance, um vídeo-clipe que pode ser visto como um filme experimental, um programa de televisão que mais parece videoarte ou um manifesto político. As fronteiras são tênues e não é difícil constatar que um determinado trabalho poderia se encaixar em uma ou várias linhas temáticas deste programa. E isso de fato acontece algumas vezes. Havia uma “conversa” entre aquelas obras e eu apenas tentei evidenciar isso.

S: Você é simultaneamente artista e curador [nomeadamente na Galeria Virgílio, SP, onde você organiza o “Cinema de Corredor]. Como é que você vive essa articulação? No que diz respeito à sua atividade de curador, você acredita numa especificidade da “arte curatorial”, ou trata-se mais dum gesto crítico?

W.M.:No meu caso, esta articulação é recente. Começou quando eu estava fazendo a residência artística do Palais de Tokyo, o Le Pavillon. Durante a residência, fiquei muito amigo de um curador romeno, o Mihnea Mircan, meu colega de Pavillon. Naquela época, além dos meus projetos artísticos, comecei a pensar nas articulações existentes entre os trabalhos dos artistas que estavam ali e nas formas possíveis de exibir e também confrontar tais trabalhos. Isso começou a invadir um terreno que não era mais apenas criação artística, mas também pesquisa e crítica. E, no meu caso, tanto pesquisa quanto crítica são importantes e indissociáveis da criação artística, o que talvez facilite a articulação com o trabalho curatorial. Mas eu não me atreveria falar em « arte curatorial », talvez eu desconfie um pouco disso, acho que acredito mais no « gesto crítico » realizado por um artista. Por exemplo, um artista pode ter um gesto curatorial e propor um trabalho que nada mais seja que a escolha de um número de filmes pra serem exibidos em um local específico, de uma maneira específica e nesse caso, acredito que haja uma articulação entre um gesto artístico e um gesto curatorial, uma confluência. Ainda não arrisquei nada nessa área, pois nunca considerei nenhum dos meus projetos curatoriais como um projeto artístico. Na falta de uma idéia melhor é sempre uma possibilidade.

S.:Falemos da sua prática artística e dos seus filmes. Estes últimos são claramente fruto dum olhar – e duma orelha – cinéfila. Como você chegou ao cinema?

W.M.: Acredito que a minha formação cinematográfica começou bem cedo, lá pelos 8 ou 9 nos e, com certeza, foi baseada essencialmente por obras de ficção. Nessa época, eu gostava do Chaplin, do Buster Keaton, The Three Stooges, de Jerry Lewis e de filmes do gênero Western, via tudo. Depois, já na adolescência, descobri os caras de que gosto até hoje: Jean Rouch, Godard, Lynch, Buñuel, Jim Jarmuch, Wenders, Júlio Bressane, Scorsese, Robert Bresson. Era uma coisa de cinéfilo mesmo, freqüentando cine-clube, festivais e sessões malditas. Daí que já cheguei à faculdade com uma formação cinematográfica que é quase a mesma que eu carrego até hoje.

Comecei a fazer documentários mais ou menos na mesma época em que comecei a fazer o que se costuma chamar “vídeos experimentais”. Na verdade, não faço muita distinção entre os dois tipo de produção e não sei se posso falar que minha produção documental caminha para uma direção mais experimental ou não. O que posso afirmar é que cada vez mais, sinto que os meus cacoetes estéticos vão ficando pra traz na mesma medida que uma pesquisa maior sobre o meio e o suporte videográfico e cinematográfico vem ganhando lugar.

Também não gosto do termo videoarte ou vídeo de arte. Prefiro vídeo de artista, que o produto do trabalho do artista que se utiliza do vídeo pra fazer seu trabalho, assim como poderia se valer da fotografia, do desenho, do cinema, da escultura, etc.